O Poder Judiciário está presente na vida de todos que convivem em sociedade, mas, às vezes, ele se supera e, também, ajuda a realizar sonhos. No caso de uma jovem de 20 anos, um mutirão da Comarca de São Félix do Araguaia, no Ponto de Inclusão Digital (PID) de Luciara, distante 1.048 km de Cuiabá, ajudou um sonho antigo virar realidade. Agora, ela ostenta uma nova certidão de nascimento com um nome que honra suas raízes indígenas da etnia Kanela do Araguaia: Junre, que significa beija-flor e se lê “iunre”.

O mutirão foi organizado pela juíza Silvana Fleury Curado, coordenadora do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) da Comarca de São Félix do Araguaia, à qual o município de Luciara pertence. Os serviços prestados, no início de dezembro de 2024, abrangeram audiências conciliatórias, solicitação de 2ª via de documentos e retificações cartorárias, além de coletas de material genético para exames de DNA gratuitos e a solicitação para trocar o nome na certidão de nascimento, do Português para a língua-mãe da etnia Kanela. 

“Fiquei sabendo que teria um mutirão em Luciara, cidade onde está minha aldeia. Fui, e o rapaz que me atendeu foi muito gentil, educado e especialmente paciente. Apresentei os documentos como identidade, CPF. Os da minha mãe também, além do RANI, certidão de nascimento indígena. Foi bem simples, tive apenas que preencher um formulário e assinar uma declaração, que eu realmente queria fazer isso”, conta Junre Kanela, que antes assinava como Myrella Pereira da Silva.

A juíza Silvana Curado afirma que a ideia de fazer o mutirão foi justamente para promover e divulgar os PIDs, instalados nos municípios de Luciara e Novo Santo Antônio, o que de fato aconteceu. Ela diz que a população passou a frequentar os Pontos de Inclusão Digital, e entenderam para que servem.

“Os PIDs têm a função de aproximar o cidadão dos seus direitos. O caso da Junre Kanela mostrou justamente isso. Ela ficou sabendo do mutirão no PID, foi lá e conseguiu alterar algo tão significativo que é o direito à personalidade. O nome é um elemento pelo qual a nossa personalidade, o nosso eu se manifesta. É algo muito sério, muito profundo e conseguir fazer essa alteração pequena, porém grande na vida de uma pessoa é recompensador”, explica a magistrada.

Nome de branco

A troca do “nome de branco” pelo nome indígena é amparada pela Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 12 de 13 de dezembro de 2024, em seu artigo 5º. “A pessoa indígena maior e capaz, registrada no Registro Civil das Pessoas Naturais, poderá solicitar diretamente perante o ofício em que se lavrou o nascimento ou diverso, à sua escolha, na forma dos artigos 56 e 57 da Lei nº 6.015/73, a alteração do seu prenome, assim como a inclusão do povo indígena, também considerada a etnia, grupo, clã ou a família indígena a que pertença, como sobrenome.”

A Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 12/2024 altera a Resolução Conjunta nº 3 de 19 de abril de 2012 (CNJ e CNMP). 

A oportunidade de mudar o nome, oferecida pelo mutirão da Comarca de São Félix, surgiu como a concretização de um sonho e é um exemplo de como o Poder Judiciário pode atuar na promoção da inclusão e na garantia dos direitos das minorias. A iniciativa demonstra que é possível construir uma sociedade mais justa e igualitária, que valorize a diversidade cultural e respeite as tradições dos povos indígenas.

A atual gestão do Poder Judiciário de Mato Grosso, presidida pelo desembargador José Zuquim Nogueira, tem como lema “Justiça Presente e Cidadania Preservada” e trabalha para a melhoria da prestação de serviços judiciais à população, com foco na redução do tempo de tramitação dos processos e na diminuição do acervo processual.

“No olhar de muitos, isso é loucura porque são 20 anos como Myrella. Mas, para mim, foi um abrir de asas para voar, renascer. Me identifico muito com meu nome (Junre), pois significa beija-flor. Agora irei voar pelo mundo, começar uma nova história. Foi necessário uma auto aceitação, e assim será com os demais. Fomos criados nos costumes dos não indígenas e hoje estamos recuperando o que foi perdido. Eu aceitei e agarrei as minhas raízes e luto por elas. E viverei por elas. Sei que o processo de cada pessoa é diferente e hoje a Myrella se foi, mas as coisas boas que vivemos nesses anos continuaram com a Junre. ”

Povo Indígena Kanela

Junre conta que o povo Kanela do Araguaia tem suas origens no povo Canela do Maranhão. Por conta do massacre, entre as décadas 1930 e 1940, algumas famílias fugiram, numa peregrinação difícil, até chegar onde hoje é Luciara e tem na sua avó uma heroína do povo Kanela. “Com a guerra e a perseguição, nosso povo foi obrigado a parar de falar a língua materna e praticar seus ritos, mas sempre teve o desejo de se reunirem novamente e viver como somos. Então a minha avó, Joana Roylle, teve coragem de enfrentar essa luta junto dos filhos e irmãos e foi agregando outros troncos familiares até o nosso reconhecimento como povo.”

“Eu nasci no meio dessa luta e fui registrada como Myrella. Depois que cresci e comecei a defender as causas dos povos indígenas e especialmente do meu povo, entendi que essa identidade não era minha. Sou filha caçula e tenho quatro irmãos. Hoje com meus 20 anos decidi assumir minha verdadeira identidade”, conta ela.

A decisão da jovem de adotar o nome Junre foi celebrada por uns e criticada por outros. “Minha mãe “de cara” concordou comigo, pois ela também tem vontade de fazer essa troca. Algumas pessoas já me chamavam assim antes, tenho esse nome há uns seis anos. Mas, muitas ainda me chamam de Myrella. Será um processo também para conseguirem se adaptar”, explica.

A mãe de Junre é bióloga e professora. Cursa mestrado intercultural na Faind/Unemat (Faculdade Intercultural Indígena) e apoia a filha em seus planos futuros.

O futuro da jovem beija-flor

Junre está se mudando para Sinop (778 km de Luciara) onde vai cursar Administração na Unemat e compartilhar a casa com outras acadêmicas. As aulas começam na próxima semana, dia 17. Ela diz que está indo com a “cara e a coragem”, pois a família não tem como sustentá-la. “Tentarei os auxílios da faculdade. Hoje estou saindo do meu território. Quero ser alguém que contribua para a dignidade de vida do meu povo. Levo comigo a beleza dos cantos, vestes, a sabedoria dos anciões e a força das guerreiras junto ao peito, para sempre me lembrar de onde vim e para onde voltarei. A Myrella Pereira da Silva começou uma história e agora a Junre Pereira da Silva Kanela irá continuar. E será melhor a cada dia.”

 

FONTE: https://www.tjmt.jus.br/noticias/2025/2/ponto-inclusao-digital-jovem-indigena-troca-nome-em-mutirao-realizado-pelo-judiciario

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